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            As crianças brincavam. Corriam e faziam barulho com extrema facilidade. Todos trabalhavam com afinco para que a vila continuasse a prosperar.
            Zanto, o lenhador, estava feliz. Com seus trinta e cinco anos de idade, adorava viver na vila de Odero. Sua atividade exigia boa forma. Seu preparo físico, desenvolvido ao longo de anos de trabalho, proporcionava- lhe uma força e resistência que somente ele possuía naquela vila. O trabalho de derrubar árvores não lhe agradava. A cada machadada desferida podia sentir o gemido da árvore refletido no cabo do machado. Infelizmente, a madeira era um material necessário, mas o lenhador nunca se permitia derrubar árvores além do que a vila realmente precisava.
            Enquanto Zanto afiava seu longo machado, seus olhos fixavam-se na careta que um dos seus ajudantes fazia ao tentar erguer uma das robustas toras empilhadas à sua frente, e sem se dar conta, sua atenção foi desviada para uma estranha sombra crescendo ao fundo.
            Focou sua visão. Não podia ser verdade. Interrompeu seu trabalho e esfregou seus olhos para certificar-se que eles não o enganavam. Não. Infelizmente não era mentira. Seu estômago deu uma reviravolta. Pôde ver uma bizarra criatura segurando sobre o ombro uma enorme serpente branca e, em uma das mãos, pendia o corpo do honesto mago que protegia a vila em que morava. Ao lado da fera, um mago vestido de preto acompanhava o gigante ser. Os estigmas brilhavam brandamente nas mãos.
            Zanto, assim como os outros, sabia o que aquilo significava. Se Odero havia sido derrotado, o novo mago a quem todos da vila deviam obediência era o que se apresentava vestido de negro à sua frente.
            Todos notaram a aproximação do desconhecido. A tristeza e a apreensão tomaram conta do ambiente. As crianças correram, aos prantos, para as saias de suas mães. Ninguém ousava dizer nada. Todos olhavam a cena aturdidos.
            Zanto não agüentou o silêncio corroendo seus pensamentos e iniciou uma improvisada recepção ao estranho que se aproximava.
            — Seja bem-vindo! Como podemos notar, o senhor venceu Odero. Esta é sua nova vila, portanto, aguardamos suas ordens — disse com a voz trêmula, enquanto prestava reverência.
Todos os moradores da vila aproximaram-se e, um a um, copiaram o movimento de Zanto.
            A criatura jogou ao lado de Zanto o corpo da serpente morta e, por cima da carcaça do gigante réptil, o corpo de Odero foi largado. Pelo branco do corpo da serpente, o sangue escorria, contornando de vermelho as escamas albinas.
            Ouvia-se, cada vez mais, o choro espalhado pelo ambiente. Não eram somente as crianças que demonstravam sua tristeza, ninguém desejava aquilo. Odero e sua serpente sempre foram bastante bondosos com todos eles.
            — Como se chama nosso novo mestre? — perguntou Zanto, percebendo que teria de continuar a ser o porta-voz da vila neste primeiro contato.
            — Não gosto de humanos — confessou o recém-chegado.
            A apreensão permitiu que o silêncio se expandisse. O tique-taque emitido pelo Relógio do Passado ecoava profundamente no cenário.
            — Acreditam que servem para alguma coisa, porém dificilmente se sacrificam para cumprir ordens — disse o mago negro, com sua voz grossa, de forma extremamente rude.
            As pessoas, após ouvirem aquelas palavras ásperas, sentiram um completo vazio dentro de seu coração. Não sabiam o que esperar. Perceberam, pelas diretas palavras, que o mago negro não acreditava que seus novos seguidores possuíssem alguma utilidade para ele. E, se o estranho havia feito aquilo com o poderoso mago Odero, podiam imaginar o que ele seria capaz de fazer com meros camponeses e simples guerreiros. O nervosismo, que já estava presente, aumentou dentro de cada morador da vila.
            — Senhor...
            — Por que choram por esse fraco? — indagou o mago negro, interrompendo Zanto em tom de ameaça.
            — Estamos aqui para servi-lo! — disse Zanto, percebendo que estavam à mercê de um mago nada parecido com Odero.  — Esta vila agora pertence a você!
            — Vocês querem motivos para chorar? — continuou o mago negro, ignorando as palavras de Zanto.
            — Senhor? Não... por favor... nós lhe suplicamos... — dizia Zanto humildemente.
            — Então lhes darei — concluiu o ameaçador mago negro na frente de todos, levantando seus braços com as mãos brilhando, enquanto grandes faíscas pulavam dos seus dedos.
            Zanto percebeu que tudo estava perdido, levantou-se e correu gritando:
            — CORRAM! SALVEM SUAS VIDAS!
            O desespero foi geral. As pessoas trombavam-se. Não sabiam para onde correr. Para eles, aquela vila era o único lugar seguro para se viver, por isso parecia improvável que o melhor a fazer fosse deixá-la.
            Enquanto o mago negro emanava raios na multidão em fuga, utilizando o feitiço relâmpago, a grande criatura regurgitava bolas de fogo para atingi-la. Ninguém estava sendo poupado da crueldade iniciada pelo impiedoso mago. Até mesmo as crianças eram atacadas sem a mínima compaixão.
            Durante o massacre, Zanto corria. O lenhador não conseguia entender o motivo de se tornarem vítimas de tanta agressividade. De repente, o lenhador sentiu um forte golpe atingir-lhe as costas juntamente com uma explosão de luz. Caiu. Levantou-se com bastante dor no local atingido e, mesmo sentindo o gosto de sangue invadindo-lhe a boca, continuou a correr. Percebeu que não ouvia mais os gritos das pessoas. Imaginando que o ataque poderia ter cessado, virou-se, mas infelizmente lá estavam elas, sendo atingidas sem nenhuma chance de sobrevivência.
            Zanto percebeu que tinha perdido a audição. Com o corpo amolecido, voltou a correr em direção ao refúgio natural e perigoso que a floresta oferecia. Correu sem olhar para trás, sem saber o que fazer. Apenas corria sem rumo. A dor aumentava, mas não podia tombar agora. Não sabia o motivo de sua persistência em ignorar a fraqueza que lhe tomava as pernas, mas sentia que ainda tinha algo a fazer antes de morrer. Zanto apenas se arrastava para dentro da floresta, aturdido, lutando contra o próprio corpo que teimava em obedecer-lhe.
            O tique-taque do relógio foi diminuindo vagarosamente, ao mesmo tempo que a cena doentia, deixada pelo vilão vestido de negro e sua criatura, desaparecia, revelando aos quatro espectadores seus rostos tristes e inconformados devido à ignorância e covardia que presenciaram na vila que agora se tornara um cemitério, porém, sem as moradas de pedra para guardar os corpos mortos e maltratados que ali estavam esparramados.

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